“Os enfermeiros acabam por ser obrigados a fazer horas extraordinárias ilegais”
11 de dezembro 2024
in SaúdeOnline
Para Lúcia Leite, presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros – ASPE, é preciso lutar contra horas extra “ilegais” e dar-se mais valor às especialidades de Enfermagem. Em entrevista, apela a que os enfermeiros não tenham medo de lutar pelos seus direitos, pois tal também irá beneficiar a população.

Quais os principais problemas dos enfermeiros?
São diversos. A primeira questão tem a ver com a prática regular – aliás, ancestral – de não se cumprir com a lei no que diz respeito aos horários dos enfermeiros. Há muitos anos que as escalas são emitidas já com horas a mais, sem se ter em conta as 35 horas, previstas na lei. Os enfermeiros acabam por ser obrigados a fazer horas extraordinárias ilegais, para encobrir a carência permanente de profissionais. Também é verdade que os próprios enfermeiros se têm conformado com esta realidade e, sobretudo, por duas razões: os doentes internados precisam de cuidados e não podemos deixar um turno desfalcado e, sobretudo nas zonas urbanas, é preciso fazer mais horas, por o custo de vida tornar os salários ainda mais baixos.
Atualmente, este é um dos principais problemas da Enfermagem, porque põe em causa a segurança dos próprios enfermeiros e, principalmente, dos doentes. Um enfermeiro não é um fazedor de coisas, tem de tomar decisões, faz diagnósticos e um enfermeiro que é transformado num braçal acaba por deixar de ter capacidade de discernir as necessidades dos utentes. E também não tem, muitas vezes, tempo para prestar os cuidados necessários. Hoje em dia, temos um Serviço Nacional de Saúde (SNS) com pior qualidade, também muito por causa desta questão.

E em relação à carreira?
Existem problemas crónicos, que já vêm das alterações anteriores à carreira. Basta lembrar que tínhamos uma carreira de 1991, com cinco categorias e que reconhecia o risco de penosidade da profissão. Mas isso veio a alterar-se para pior com a carreira de 2009, quando se passou a duas categorias na teoria e a uma única categoria na prática. A diferenciação dos enfermeiros especialistas e a dos gestores acabou por se perder.
Em 2019, com a greve cirúrgica, foi possível recuperar a carreira com três categorias, mas, desde então, assistimos a situações de inversão remuneratória, porque o normativo legal tem aplicações da lei que prejudicam os mais antigos e os mais qualificados, assim como os que obtêm melhor classificação de desempenho.
A ASPE tem tentado alertar, já desde 2019, de que a lei está mal redigida, criando estas inversões, o que gera, inevitavelmente, um sentimento de grande injustiça. Os especialistas pagaram a sua formação, fizeram estágios, duplicando o seu horário de trabalho, e depois veem-se ultrapassados por enfermeiros que não fizeram essa formação e que não têm competências diferenciadas. Tudo isto cria uma grande instabilidade, à qual se acresce a escassez de recursos humanos.
Com a campanha para alertar para essas horas extra, qual é o vosso objetivo? Esperam que a população se solidarize convosco?
Esta prática das horas extraordinárias, que já vem de vários governos (somos apartidários), é transversal e ultrapassa os enfermeiros. A sobrecarga de trabalho contribui para pôr em causa a sua saúde, passa-se a não ter a mesma capacidade para trabalhar. O enfermeiro tem uma ‘arma’ mortal nas mãos todos os dias, ou seja, basta errar uma dose ou confundir uma ampola e pode matar o doente. Os cidadãos também devem estar alerta sobre esta questão, preocupando-se com o facto de os enfermeiros não terem as condições necessárias para cuidar de si.
Muitos dos problemas que surgem nas instituições e que são alvo de queixas na comunicação social devem-se, essencialmente, a falta de cuidados de Enfermagem. É muito frequente ouvir-se falar dos doentes internados com alta clínica e que, supostamente, não precisam de cuidados. Isso é falso! Precisam de cuidados de Enfermagem. Se não têm, no exterior, nenhuma instituição que lhes dê esses cuidados, têm de se manter no hospital. A pessoa pode ter alta médica, mas precisar de cuidados de Enfermagem.
Há muitas idas à urgência, porque não temos resposta. E porquê? Muitas destas pessoas não têm resposta nos cuidados de saúde primários, porque estes estão centrados na porta do médico. Não é uma questão corporativista, os médicos são, obviamente, muito importantes, mas não é suposto que estejam a assegurar esta porta de entrada no sistema de saúde, quando esta função pode ser assegurada por enfermeiros. Por exemplo, há muitos anos que são os enfermeiros que fazem a triagem de Manchester. Está provado que tem corrido bem. Ora, se o podem fazer no hospital e até no SNS 24, por que razão só agora o CODU vai ter enfermeiros para fazer triagem de casos emergentes? Nos CSP, onde recorrem os que têm necessidades menos graves e agudas, por que não haveremos de fazer a triagem?
Há muitos problemas no SNS, mas apenas os tentamos resolver com ‘pensos rápidos’, quando, na prática, se deve avançar com uma reforma estrutural e equilibrar o rácio médico-enfermeiro. Como na maioria dos países da Europa, devíamos ter dois enfermeiros por cada médico ou três como nalguns países e o que acontece, em Portugal, é que se tem quase um para um. Por exemplo, num turno de manhã, na Ginecologia-Obstetrícia e na Pediatra tem-se muito mais médicos do que enfermeiros. Isto é a subversão do sistema!

Atualmente, têm estado em negociações com o Ministério da Saúde. O que se pode fazer para colmatar quer a questão das horas extra quer das carreiras?
Primeiramente, é preciso que o Ministério dê atenção às prioridades do SNS. Não apenas no que diz respeito à carreira. Para nós, resolver os problemas graves dos enfermeiros significa salvaguardar a sobrevivência e a sustentabilidade do SNS. O problema é que os governos fazem, muitas vezes, política, isto é, querem resultados imediatos, vivendo muito à custa dos soudbites e dos media. Com isto, os problemas de fundo que se poderiam resolver se houvesse alguma serenidade para olhar para os mesmos, sem mais gastos – o dinheiro não resolve tudo -, seria melhor.
Infelizmente, temos um Ministério da Saúde que dialoga pouco e que é muito prepotente. Impõe apenas a sua visão. Ainda há dias fui surpreendida com uma alteração, por portaria, de vários normativos legais, nomeadamente nos centros de responsabilidade integrados (CRI) da urgência, e relativo também à hospitalização domiciliária, e os sindicatos nem sequer foram ouvidos. Não há negociação, mesmo que acabem por nos ouvir. Desde 23 de setembro que estou a pedir para ver a proposta entregue aos cinco sindicatos que assinaram o acordo e continuo a não ter resposta! Temos que ser sérios nestes processos, para que o SNS não venha a sofrer. O que é apresentado não vai resolver os problemas.
Olha-se muito para a falta de médicos, mas isso é falso. Os médicos estão, sim, mal distribuídos, pois temos mais médicos do que a maioria dos países da Europa. É preciso reorganizar os serviços e valorizar todas as profissões da saúde. Reforço: não se trata de corporativismo. No século XXI, o SNS não pode trabalhar à custa do voluntarismo dos profissionais. Repare que se pode ir buscar médicos a outros países, mas no caso dos enfermeiros, a realidade é outra. A escassez de enfermeiros é mundial. Portugal forma, anualmente, mais de 3 mil enfermeiros, oferecemo-los de graça ao mundo e não estamos a salvaguardar a sua fixação em Portugal. O mundo está a envelhecer – não estamos pior por causa dos imigrantes que têm filhos – e vamos precisar cada vez mais de cuidados de Enfermagem.
Apesar desta realidade, que mensagem gostaria de deixar aos enfermeiros para não abandonarem a profissão e para que continuem a especializar-se?
As especialidades em Enfermagem têm sido subaproveitadas, apesar de termos muito a oferecer ao sistema de saúde português. Vale a pena procurar essa diferenciação, apesar dos custos associados. Mais cedo ou mais tarde, face à situação sociodemográfica, os enfermeiros vão ter de assumir determinados cuidados.
Gostaria muito que os enfermeiros acreditassem em si mesmos. Temos sido muito pressionados por parte das instituições que, não tendo as condições adequadas, acabam por facilmente ameaçar e coagir os trabalhadores. Há, de facto, alguma chantagem emocional. Os enfermeiros têm medo de lutar pelos seus direitos e são verdadeiros escravos da situação em que se encontram. O facto de as instituições não respeitarem a lei, subverte todo o processo, daí que a ASPE peça ao Primeiro-Ministro, numa petição, apenas uma coisa: que se respeite a lei. Isto é ridículo, porque estamos a ultrapassar o limite do razoável. Os enfermeiros devem lutar pelos seus direitos, a bem da nossa profissão, mas também de toda a população.
MJG